Notas sobre administração e a questão jurisdicional em Minas (1710 – 1750). Thiago Rodrigues da Silva*
Pretendo, de forma sucinta, apontar práticas administrativas e especificidades regionais. O
Antigo Regime tem suas lógicas próprias e a pesquisa através das fontes do Arquivo Histórico
Ultramarino, organizadas pelo Projeto Resgate, possibilita a visualização de aspectos da
Palavras chaves: Administração colonial, Império Português, Cultura Política.
The Ancient Regimen has its own logics and the research amid the Arquivo Histório
Ultramarino fonts, staged by "Projeto Resgate", allows the visualization of aspects of the
Portuguese Empire. I intend, in a resumed manner, point administrative practices and
ESPECIFICIDADES REGIONAIS of Minas. I privilegy administrative tragetory of
individuals who occupied the posts of Ouvidor, Mestre de Campo e Secretário de Governo de
Key-words: administration, Portuguese Empire, Politic Culture
Apresento alguns apontamentos em relação a três cargos de grande importância da
governança Portuguesa na América: Ouvidores, Secretários de Governo e Mestres de Campo.
Em trabalho ainda inédito, Fernanda Bicalho1 mostra que a questão jurisdicional é crucial
para a atuação administrativa de secretarias e conselhos no Reino, sendo este paradigma
central para a organização do Império, proporcionando autonomia a estes corpos.
Administração, política e justiça são indissociáveis nesta sociedade. Por seu turno, se nos
concentrarmos nos homens que atuam em diversos níveis na administração do Complexo
Imperial Português salta aos olhos a busca por mercês e privilégios de diversos tipos em sua
comunicação direta ao rei, ilustrando a centralidade2 do rei e a Economia Política de Privilégio, que cristaliza “relações de vassalagem e lealdade” (BICALHO, FRAGOSO,
GOUVÊA – 2000, pg. 67). Sendo assim, homens alçavam o prestígio e a ascensão social
através dos serviços prestados ao monarca. Vale lembrar que a Nobreza Lusa se caracterizava
pela dependência das mercês concedidas pelo monarca (BICALHO, FRAGOSO, GOUVÊA –
* Graduando da UFF. O presente trabalho conta com o financiamento da FAPERJ, concedido por meio de bolsa de Iniciação Científica sob orientação da Profª Drª Fátima Gouvêa.
1BICALHO, Maria Fernanda B.“As tramas da política: Conselhos, secretários e juntas na administração.” no prelo.
2000,pg. 68). Os homens da governança também se destacam junto à nobreza da terra e são
peças chaves na constituição de Redes de Reciprocidade que articulam diferentes regiões do
Complexo Imperial, dando-lhe forma e vitalidade.
Um personagem que ilustra esta realidade a nível local é o ouvidor da Comarca do Rio das
Velhas, José de Sousa Valdez, que atuou de 1720 a 1725. Os ouvidores tinham diversas
atribuições que versavam principalmente sobre a justiça, podendo em alguns casos até mesmo
decretar o “degredo, fora da capitania, nos casos de pessoas de ‘maior qualidade’”. Atuavam
junto à câmara, arbitravam castigos a escravos e índios. Alçavam sem apelação sobre algumas
causas cíveis. Auxiliavam governadores e versavam em matérias jurídicas (SALGADO (org.)
Valdez, numa de suas primeiras cartas, solicita “a D. João V a mercê de mandar definir o
âmbito territorial da sua jurisdição3”. Ao atuar se dirige diretamente ao rei, como na “Carta
(.) para D. João V, dando conta da lacuna e incorreções existentes no regimento da Fazenda
Real do Rio das Velhas, que o governador de Minas lhe ordenara desse cumprimento4”.
Observa-se seu arbítrio em questões locais, como os conflitos decorrentes de disputas pelas
terras minerais do Sítio do Papagaio5, e a “devassa feita por existirem ouros falsos (.) e do
roubo praticado por um mulato6”. Há cartas que comunica “por que os povos de Macaúbas se
levantaram (revoltaram) no ano 1722 em virtude de um despacho de D. Lourenço de
Uma questão colocada pelo trabalho empírico é a decorrência de conflitos destes ouvidores
com membros da câmara e governadores8 e uma cultura administrativa que busca manter os
privilégios do cargo e suas prerrogativas jurisdicionais9, visando a permanência e a ampliação
de privilégios dados aos seus antecessores10.
Há a decorrência da acumulação de funções e o apego à jurisdição (usada por vezes como
arma política). Por exemplo: “Francisco Leote Tavares, ouvidor-geral do Rio das Mortes e
3 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 2, Doc.: 66
4 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 2, Doc.: 116
5 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 1, Doc.: 70 e AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 2, Doc.: 117
6 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 5, Doc.: 26
7 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 5, Doc.: 28 8 Como no caso dos ouvidores Caetano Furtado de Mendonça e Custódio Gomes Monteiro (este elogiado pela câmara, que pede sua volta à ouvidoria, mas logo depois é rechaçado em correspondências da mesma.
9 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 10, Doc.: 19 e em AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 24, Doc.: 46
10 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 25, Doc.: 11, AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 25, Doc.: 61 , AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 41, Doc.: 3, dentre outros exemplos.
superintendente das terras minerais, queixando-se a D. João V sobre as intromissões do
guarda-mor na área da sua jurisdição11”.
Estamos aqui discutindo as Minas e há grandes questões referentes ao repartimento das terras
minerais, como na “carta do ouvidor-geral e oficiais da Câmara da Vila do Carmo, relativa ao
motim que ali houve resultante da repartição de umas terras minerais12”, tornando os
ouvidores importantíssimos no seio desta sociedade.
Algumas questões sinalizadas no estudo das atividades relacionadas aos ouvidores ressurgem
no estudo dos outros dois cargos. Naturalmente os secretários de Governo dependem do aval
metropolitano, o que se reflete na documentação, como na “Carta de Manuel da Fonseca de
Azevedo, secretário do governo de Minas Gerais [que atua de 1724 a 1732], dando
cumprimento a provisão régia em resposta ao seu pedido de criação de postos no Regimento
de Ordenanças de Vila Rica e da Vila do Carmo13”, ou quando dá “explicação sobre o
provimento dos postos militares e de Ordenanças, e solicitando ser informado sobre qualquer
queixa14”. Este documento também dá idéia do caráter normativo do cargo, assim como
quando o mesmo secretário informa sobre as “nomeações das pessoas na função publica15”. A
importância dos secretários de governo e das listas por eles produzidas se relaciona à
oficialização dos nomes dos indivíduos que exercem cargos administrativos e/ou militares16.
O posto, nas Minas, já surgiu com a especificidade de ter o regimento “do secretário do
governo do Rio de Janeiro, pelo qual se orientara17”, em 1718. Esta estreita ligação entre as
duas capitanias se reflete em 1739 quando o secretário do governo do Rio de Janeiro passou a
assistir também o secretariado de Minas devido à avançada idade e falta de saúde deste18 (que
exercia o cargo desde 1737 sem provisão19).
Os Secretários também seguem a lógica de manutenção das condições e privilégios
concedidos a seus antecessores. António de Sousa Machado que exerce o cargo de 1738 a
1744 pede “provisões para vencer 80 mil réis para aluguer de casas, papel, tinta e cavalos,
para as jornadas que houvesse de fazer com os governadores e para a condução dos livros e
11 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 24, Doc.: 74
12 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 1, Doc.: 39
13 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 5, Doc.: 105
14 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 5, Doc.: 112
15 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 6, Doc.: 48
17 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 1, Doc.: 74
18 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 37, Doc.: 81
19 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 37, Doc.: 38
papéis da Secretaria, a custa da Fazenda Real, como se praticou com todos os seus
Assim como o ouvidor, o secretário comunica ao reino abusos de vassalos. Manuel de
Fonseca de Azevedo21 informa ao Conselho Ultramarino sobre “os castigos e extorsões de que
são vítimas, por parte dos seus senhores, os faiscadores negros22”, estabelecendo uma espécie
de complementaridade com o ouvidor, fato que nos induz a entender que esses cargos são
estratégicos para a estabilidade do domínio português.
Sobre Mestres de Campo é interessante observar relações travadas com o governador. O
Tenente de Mestre de Campo General Félix de Azevedo Carneiro e Cunha é elogiado por D.
Lourenço de Almeida, “mostrando satisfação pelos serviços23” em 1722. Em 1724 o mesmo
governador se queixa de violências feitas pelo mesmo mestre no trajeto até as Minas24, o que
mostra, no mínimo, uma atenção especial por parte do governador.
Há também o caráter normativo do cargo, que versava sobre o assentamento de praça de
alferes e sargentos, fiscalizava o estado das armas (podendo aplicar penas), dentre outras
atribuições (Salgado – 1985, p. 308). Sendo que o cargo tem maior proeminência em regiões
Ainda sobre Félix de Azevedo, ele e o “mestre de campo do governo das Minas25” João
Ferreira Tavares de Gouveia pedem “a conservação da sua Antigüidade26.” Após esse pedido,
em 1732, Félix de Azevedo pede “concessão de licença por um ano, para se deslocar ao
Reino27” enquanto que em 1733 João Ferreira solicita “permissão para se deslocar ao
Reino28”. Somente uma pesquisa mais focada pode revelar qual tipo de relação que os dois
mantiveram e se ambos pertenciam a redes e quais eram estas.
Um caso típico das Minas é uma “Carta de Francisco de Melo Coutinho Souto Maior, mestre
de campo, dando conta a D. João V, entre outros assuntos, do zelo que emprega na
20 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 27, Doc.: 49
22 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 20, Doc.: 64
23 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 3, Doc.: 5 24 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 5, Doc.: 5 25 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 23, Doc.: 30 26 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 21, Doc.: 35 27 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 21, Doc.: 81 28AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 23, Doc.: 30. Posteriormente o Mestre de Campo António Ramos dos Reis pede licença para se curar no Reino, mas não há aparentemente ligação direta entre este e os aqui citados neste momento.
arrecadação dos quintos29”. Sobre casos específicos, chama a atenção o de “José Rebelo
Perdigão, mestre de campo dos auxiliares há 25 anos na Comarca de Vila Rica, pedindo a sua
conservação no dito posto e a continuação do exercício e regalias usufruídas”, refletindo
também o esforço (geral dos três cargos) de manutenção de privilégios, sendo que a
especificidade, aqui, está em manter o privilégio que perdurou durante toda sua longuíssima
Como já visto anteriormente, há a acumulação de funções, especialmente em atividades que
rendem recursos financeiros. António Ramos dos Reis, também juiz dos órfãos, mandou fazer
“um cofre com três chaves diferentes para arrecadação do dinheiro ou ouro que pertence aos
Órfãos30”. Faustino Rabelo Barbosa arremata (e perde posteriormente) a importante passagem
de Rio das Velhas31. Félix Azevedo consegue um empréstimo de 200mil reis para a ida de seu
filho à Índia, mas há depois uma “ordem de devolução32”.
Os homens que atuaram nestes três cargos mantiveram uma permanente comunicação com o
rei, estiveram imersos em disputas e conflitos locais. Buscaram sempre o reconhecimento de
seus serviços. Suas atuações se complementam, mantendo uma espécie de tutela mútua, o que
pode ser visto como um quadro administrativo caótico, mas que deve ser entendido como uma
Fontes: Coleção Documentos Históricos. Projeto resgate, Arquivo Histórico Ultramarino.
Arquivo Nacional (Brasil). Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial – coord.
Graça Salgado. RJ: Nova Fronteira. 1985
BICALHO, M. F. B. ; FRAGOSO, J. ; GOUVÊA, M. F. S. . Uma leitura do Brasil colonial:
bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penélope, Lisboa, v. 23, p. 67-88,
29 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 21, Doc.: 78
30 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 26, Doc.: 43 31 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 9, Doc.: 85 32 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 11, Doc.: 79
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